A EVOLUÇÃO DA TECNOLOGIA INTELECTUAL - Marcelo Franco

A EVOLUÇÃO DA TECNOLOGIA INTELECTUAL

Marcelo Franco
Este artigo foi inspirado na leitura do livro "Oralidade e cultura escrita" de Walter Ong (1). O autor foi um dos primeiros a atentar para o fato que a escrita é uma tecnologia, assim como a imprensa, a televisão e o computador.
O autor lembra que enquanto a história do homem moderno (H. Sapiens) abrange dezenas de milhares de anos, a invenção da escrita alfabética não chega a três mil anos. Dessa forma a oralidade foi por quase a totalidade da história humana a principal tecnologia intelectual utilizada para o processo de construção do pensamento. Sem a escrita, a educação das pessoas se faz pela via prática e os conhecimentos são transmitidos através das gerações pela fala. A distância entre aquele que ensina algo e aquele que aprende é a distância do alcance do som da voz. Além disso, ao contrário da escrita, a fala já está profundamente incorporada ao homem. Por isso a fala pode ser aprendida tão cedo pelas crianças, apesar de sua extrema complexidade.
Diferentemente de um passado recente, o conhecimento antropológico que temos hoje não permite mais considerar as sociedades sem escrita como inferiores. Isto era (ou infelizmente ainda é) apenas um preconceito. Muitas pessoas acham inacreditável que obras elaboradas como as epopéias de Homero e a Bíblia foram criadas e preservados na cultura oral (2). Como se diz mais popularmente, foram compostas de cabeça.
A invenção da escrita provocou um salto na consciência e nas habilidades cognitivas, indo além das técnicas mnemônicas naturais do pensamento oral. A técnica da escrita permitiu a construção de raciocínios muito mais abrangentes e complexos. Inaugurou o que chamamos hoje de pensamento analítico. Ao contrário da fala, um texto escrito pode ser visto e corrigido inúmeras vezes.
No entanto, sendo uma técnica complexa, a escrita só é aprendida com muito esforço, sendo que muitos adultos não conseguem dominá-la completamente, ainda que estejam em contato com ela durante toda a vida. Assim, a escrita transformou profundamente o processo educativo. A incorporação da escrita como forma de produção e conservação do conhecimento trouxe uma dupla diferença: era preciso ensinar o conhecimento que se tornava cada vez mais amplo e mais complexo, mas para isso era preciso primeiro ensinar a própria técnica da escrita.
Outra mudança trazida pela escrita está relacionada com a temporalidade e a distância. A escrita se conserva no suporte físico, enquanto a fala desaparece em um instante. O que não é memorizado em uma cultura oral é perdido. Na cultura escrita há um deslocamento da importância da memória para a habilidade de interpretar o que esta registrado. Um texto escrito também pode alcançar uma distância ilimitada, o que é um poder inestimável quando comparado com a metragem reduzida do alcance da voz de um orador. Assim, a escrita permitiu que os pensamentos fossem registrados e transmitidos de forma fiel, independentemente do tempo e do espaço. Um processo semelhante está acontecendo hoje com o uso das máquinas de calcular e dos computadores. Estão desaparecendo as razões que davam sentido ao saber algo de "cabeça". Habilidades importantes nas culturas oral e escrita são substituídas por novas tecnologias.
Outra grande transformação veio com a invenção da imprensa. A cópia de manuscritos nunca foi eficiente e produtiva. A imprensa transformou o livro em um produto mais barato e de cópias idênticas. Além disso, foi com a imprensa que se consolidou uma idéia que apenas se insinuava nos manuscritos, a de uma obra fechada, terminada e datada. A impressa marca de forma mais brusca a ruptura entre um pensamento ainda com resquícios de oralidade para o pensamento analítico nascido da escrita.
A fala geralmente só faz sentido quando se está na presença de outras pessoas. É uma atividade iminentemente social. Mas com a leitura é diferente. Foi o livro impresso que firmou definitivamente a característica introspectiva da escrita. Isso tanto é verdade que enquanto a escrita não era totalmente incorporada ao pensamento, a prática da leitura foi realizada em voz alta para um grupo. Apenas muito depois se tornou uma atividade silenciosa e solitária como nós a conhecemos hoje.
Graças a imprensa, a industrialização do livro fez com que milhões de pessoas pudessem ter acesso a um mesmo texto. Até sua invenção, poucas pessoas chegavam a possuir as raras cópias de manuscritos. Foi também com o surgimento dos livros impressos que se deu a expansão das bibliotecas e das escolas. O uso de material impresso também permitiu o surgimento da educação a distância, cuja prática institucionalizada começou a se sedimentar em vários países já no século passado (3).
Na segunda parte do artigo tratarei mais especificamente do terceiro momento das tecnologias intelectuais: a informatização da palavra.

A informatização da palavra
Não é uma avaliação discrepante considerar que na última década ocorreu uma das mais importantes evoluções tecnológicas do século, mesmo considerando outras igualmente grandiosas. Este acontecimento díspar foi o surgimento da Web. Foi o momento em que o computador passa de um objeto isolado para a forma de um conjunto técnico. Computador e rede se confundem como telemática.
A Web tem interessado à educação sob variadas óticas. Nos últimos séculos a impressão havia fornecido as bases tecnológicas para a elaboração dos textos. Estes possuem características insuperavelmente ricas, já muito estudadas. No entanto, a informática conseguiu adicionar ao texto recursos ainda mais sofisticados, tanto no momento de sua produção quanto da publicação. Hoje as técnicas de corrigir o texto no papel, a colagem de parágrafos e as várias passagens do texto pelas máquinas de escrever, são de conhecimento restrito a poucas pessoas(4). Tudo isso ficou obsoleto a partir da década de oitenta com os editores dos microcomputadores.
Em sua essência o computador é uma máquina matemática. Ele trabalha com números registrados por sinais elétricos em vez de numerais gravados no papel. Da mesma forma que a ciência contemporânea persegue e consegue matematizar vários elementos e processos da natureza, o computador pode representar através de números uma grande amplitude de signos das mais variadas linguagens. Isto não só nas suas formas visuais, como na escrita e na imagética, mas também em formas sonoras e cinéticas. Representando uma infinidade de signos e tendo aplicação quase todo tipo de tarefa o computador foi chamado de máquina universal.
No caso específico da escrita, essas novas tecnologias permitiram romper com uma discrepância entre o texto e a forma que pensamos(5). É que o texto é linear, sendo difícil o ir e voltar entre as suas partes e pior ainda se ele estiver recheado de longas notas de rodapé. As notas de rodapé é que tentam representar linhas paralelas ao pensamento central do autor, naturais no raciocínio humano. O formato do livro então tenta forçar um seqüência, um início, um meio e um fim, uma finalização que não existe como realidade cognitiva. Não que o escrever seja em si um limite para a construção do conhecimento. Muito pelo contrário, o pensar escrevendo foi um grande salto como tecnologia intelectual. No entanto, o computador permite a construção de um texto – o hipertexto - com as inúmeras linhas paralelas do pensamento central, facilmente recuperáveis através de vínculos eletrônicos (links). O hipertexto é um recurso muito poderoso pois as ligações que ele permite podem ser buscadas de maneira muito eficiente na dispersão da rede mundial de conhecimento.
"Se tem de haver um único diferenciador entre os documentos em papel e os digitais, são os vínculos de hipertextos. Embora os vínculos sejam mantidos em notas de rodapé e referências convencionais, eles não apenas fazem referência a outro documento, como também oferecem um caminho instantâneo a esse outro documento. Esses vínculos automatizam os caminhos de consulta através da informação, possibilitando um estudo em ritmo de tempo real. Os usuários podem seguir sua inspiração para rapidamente captar idéias específicas em vastos mares de informação." (6)
Temos uma longa tradição de ensino da escrita e de incentivo ao desenvolvimento do hábito de leitura, tanto como lazer como forma de aprimoramento profissional e cultural. Alguns pensadores já deram contribuições para a elucidação do espaço que ocupará o hipertexto e o futuro do livro impresso. Como afirmou Umberto Eco, os textos para reflexão, que dão uma visão do mundo continuarão indefinidamente como livros, enquanto que os textos de consulta, como as enciclopédias, já estão migrando para os meios eletrônicos.
Tornando-se predominante os hipertextos, se pode então afirmar que é de extrema importância a alfabetização para a escrita e leitura com estas novas técnicas. Mas também alguém pode dizer que qualquer pessoa pode aprender a se virar muito bem com informática em poucas semanas, o que significa que é uma tarefa fácil, se compararmos por exemplo, com os muitos anos para se aprender uma língua estrangeira. Tarefa complexa ou simples, de qualquer modo o mundo já não está nada fácil para os analfabetos digitais. Espera-se que pesquisas pedagógicas indiquem os melhores caminhos para a inexorável união entre a educação e informática.
Há pouco tempo muitos educadores chamavam a atenção para a formação do cidadão crítico enquanto vasto contingente da população permanecia, como continua permanecendo, sem o quesito mínimo de participação autônoma na vida pública do país, que é a capacidade de leitura e escrita. Com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, como a televisão, estas camadas passaram a receber um bombardeio de informações em novas linguagens. Na verdade o que elas recebem são signos ideológicos que não estão preparadas para decodificar. Como se fora entretenimento se misturam realidade e fantasia. E se assiste a tudo passivamente - programas após programas, inclusive os grotescos -, pela falta de uma educação com referenciais culturais mais elaborados. A TV se tornou uma espécie de pedagogia negativa cuja linha de ação opera muitas vezes no sentido de fazer uma apologia do que há de pior na condição humana. É assim admirável que as pessoas fiquem atônitas com a degradação social, quando uma das raízes está tão a vista: a banalização e legitimação da inveja, da rivalidade, do comércio dos corpos, do consumismo, da violência, da esperteza, da ilicitude, da impunidade, da plutocracia, entre outros.
Agora vemos emergir na Web a mesma possibilidade. Inicialmente vista como um espaço para a inteligência, a Internet tem de grande potencial de realizações relevantes, se não for tomada pelos mesmos interesses que operam em quase toda televisão. Pior ainda, a rede se mostrou um lugar muito adequado para a propagação de grupos nefandos como por exemplo, racistas, neonazistas, pedófilos e terroristas.
Dessa forma, se a ênfase em uma educação para as novas linguagens, principalmente as digitais, tomar o rumo da superficialidade do design, da hipocrisia do marketing e não para a compreensão do significado das mensagens, o futuro com as novas tecnologias poderá não ser o brilho esperado de uma nova era, mas a reminiscência de momentos nefastos da história humana que muitos preferem esquecer.
"Somos feitos de três linhas, mas cada espécie de linha tem seus perigos. Não só as linhas de segmentos que nos cortam, e nos impõem as estrias de um espaço homogêneo; também as linhas moleculares, que já carreiam seus micro-buracos negros; por último, as próprias linhas de fugas, que sempre ameaçam abandonar suas potencialidades criadoras para transformar-se em linha de morte, em linha de destruição pura e simples (fascismo)." (7)

Notas:
(1) Walter Ong, "Oralidade e cultura escrita", Campinas: Papirus, 1998.
( 2) Ibid,1998
(3) Saraiva, Terezinha, "Educação a distância no Brasil", Em Aberto, Brasília, número 70, abr/jun. 1996.

(4)Que fique claro que não quero dizer que o uso de tecnologias mais avançadas melhore o conteúdo de um texto. Assim, é elucidativo que Carlos Drummond de Andrade – para mim o maior poeta brasileiro moderno – tentou, mas nunca se adaptou a escrever com uma máquina elétrica. Esta história aparece no livro póstumo "Farewell".

(5)Sobre essa questão veja o texto clássico de Vannevar Bush, As we may think, em http://www.isg.sfu.ca/~duchier/misc/vbush. Neste artigo de 1945 Bush discute os conceitos do que agora é chamado de hipertexto.

(6)Tony Mckinley, "Do papel até a Web", São Paulo: Quark Books, 1998, pag.20. O autor tem um site sobre o livro em http://imagebiz.com .

(7)Gilles Deleuze e Felix Guattari, "Mil Platôs:capitalismo e esquizofrenia", São Paulo: Ed. 34, 1997, vol. 5, pag.222.